Relato de quem sofre

Sara Sharon
4 min readMar 12, 2022

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arte tirada do pinterest, créditos na imagem.

São 5h da manhã, seu “despertador” particular te acordou. É a terceira vez essa semana, e ainda é quarta-feira. Você levanta correndo e vai acordar sua esposa e suas duas filhas. Uma delas acorda chorando porque o “despertador” é muito alto, muito perto. Vocês correm pro banheiro: é o único lugar mais “seguro”, mas não pode acender a luz. Não, é perigoso demais, alguém pode entrar. Elas estão com medo, apavoradas.

6h e o “despertador” deu uma trégua. Vocês saem e vão tomar café, a primeira refeição do dia hoje é só café puro e água, com pão amanhecido. É perigoso demais sair pra comprar, e, mesmo que não fosse, você não tem dinheiro pra esse luxo, mesmo que sejam só 15 centavos o pão. Sua filha mais nova chora. Ela quer nescau, mas hoje não tem dinheiro suficiente pra comprar, então ela vai ter que se contentar com água, mas dói, dói não poder fazer nada.

O “despertador” volta a tocar, e de repente seus olhos estão queimando, sua garganta está pegando fogo, você não consegue respirar direito. Jogaram gás de pimenta no pequeno quintal da sua casa, sem motivo, apenas por jogar. Suas filhas choram, os olhos estão vermelhos. Sua esposa corre pra fechar a pequena janela da sala, a fumaça está insuportável.

Você liga pro seu chefe. Não tem como sair de casa nessas condições, mas ele grita, porque ele não se importa: ele quer trabalho, ele quer resultado, ele quer dinheiro. Você tem que ir, não importa se no meio do caminho você pode morrer. Então você faz um esforço, pede a Deus por segurança, beija a esposa e abraça as filhas. Diz ‘Eu te amo’ porque tem medo de não voltar mais.

Seu marido sai de casa, você fica com o coração apertado, doendo, sangrando, com medo de ele ser confundido, alvejado, violado, mas tem fé de que à noite ele vai voltar. Suas filhas não vão pra escola, pela segurança delas. em casa estão mais seguras. Então você abre o armário pra fazer o almoço, e só tem 1kg de arroz, 1kg de feijão e sal. Nada mais, pro mês inteiro. Abre a geladeira, e só tem água, ovo e sachê de ketchup e mostarda. Não tem legume, não tem verdura, não tem fruta, não tem saúde. O almoço de hoje vai ser o prato da casa, sem sonhos, sem dignidade, sem segurança e sem esperança.

Às 16h você liga no jornal. Quer ver o resultado do desastre de hoje, e descobre mais uma vez que os “inimigos” saíram como inocentes. Houve vítimas: 12 homens morreram, baleados, perfurados. Alguns estavam indo à padaria, outros indo trabalhar, e seu coração começa a bater mais forte, angustiado, desesperado, com medo de que seu marido seja mais um na estatística. Você liga pra ele, e não tem respostas. Liga de novo, e cai na caixa postal. A dor aumenta. “Meu Deus, será que estou viúva? será que minhas filhas estão órfãs?” é um medo conhecido. Toda vez que o “despertador” desperta, esse medo volta, atormenta, arromba a porta e rouba espaço. Na mente e no coração.

2h depois seu marido chega, acabado, derrotado, cansado, oprimido. No caminho de casa viu seu amigo, seu melhor amigo, no chão, morto, baleado, perfurado. “Ele era inocente”, você pensou, mas não importa, não pra eles. Ele era preto, de raça, escuro, e pro “inimigo” todos nós somos iguais, bandidos. Então você chora, bota pra fora a dor. Perdeu seu melhor amigo, mas poderia ser você, poderia ser sua mulher, poderiam ser suas filhas. Estamos todos à mercê do sistema, ninguém nos vê, ninguém nos ouve, e a única atenção que recebemos é a da bala perdida, que de perdida não tem nada.

Você liga no jornal, e seu amigo, o inocente, que saiu de casa pra comprar arroz pra sua família, aparece, estampado em uma foto 3x4. Inventaram, como sempre, que ele era traficante, e a história se repete. Mesmo que ele seja inocente, não adianta gritar, não adianta reclamar. Ninguém liga pra gente.

E, no dia seguinte, o “despertador” vai tocar de novo. Vai ter mais 4 vítimas, mais 4 amigos, mais 4 companheiros de dor, de fome, de desleixo, de indiferença, que vão sair pra tentar ganhar a vida, sair da miséria, mas só vão encontrar uma bala perdida, que só se perde em corpo negro, em corpo pobre, mas ninguém liga…

Baseado em fatos reais.
Revisão: Pedro Araújo

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Sara Sharon

tô aqui pra falar abobrinha, mas as vezes algo sério também.